Entre carolinas e acasos
- Admin
- 30 de jun.
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E foi assim que conheci ele — ou talvez, me conheci.
Na época, tudo o que eu queria era um canto só meu. Depois de anos apertando o orçamento, abrindo mão de viagens, roupas novas, e até aniversários mais elaborados, consegui juntar quase tudo para dar entrada em um apartamento. Faltava pouco. Comecei a visitar sites de imóveis com uma ansiedade misturada à esperança de que algo ali me chamasse como um lar, não como investimento.
Foi numa dessas noites, entre uma aba e outra, que vi ele. O apartamento. Sacada ampla, plantas penduradas num varal de corda rústico, uma poltrona de linho bege perto de uma luminária de pé. Havia uma serenidade ali. Mas foi na foto do quarto da suíte que meus olhos congelaram: Na foto do closed, pendurada junto a tantas outras roupas percebi uma camisa xadrez azul, desbotada nas dobras do colarinho. Era igual à minha. Não uma camisa qualquer — era a camisa do meu pai, que herdei depois que ele se foi.
Imediatamente fui até meu guarda-roupa. Abri, tenso. Lá estava ela, intacta, cheirando a naftalina. Suspirei aliviado, mas também desconcertado. Coincidência demais. Resolvi não pensar muito. Dias depois, não aguentei. Voltei ao anúncio e salvei a foto. Ampliei. Dei zoom. Observei. A calça preta era uma Pierre Cardin, idêntica à que uso nos domingos. Os jeans eram da Wrangler, e até os Crocs cinza com meias estavam ali, da mesma forma que costumo ficar nas manhãs preguiçosas de sábado. Era bizarro.
Peguei o endereço do anúncio e fui ao Google Street View. O entorno me parecia absurdamente familiar — como se já tivesse passado por ali mil vezes. Na impulsividade, decidi ir pessoalmente.
Na portaria, tentei saber mais. O porteiro foi educado, mas firme: “Não posso informar qual unidade está à venda.” Saí frustrado, mas decidido. Liguei para a imobiliária. Do outro lado da linha, a voz seca: “Foi vendido esta manhã.” Fiquei imóvel. Como assim? Meu apartamento, minhas coisas, minha camisa... vendido? Era como se algo tivesse sido arrancado de mim antes mesmo de me pertencer.
Desnorteado, estacionei o carro perto de uma padaria na esquina. Pedi um cappuccino e sentei. Tentava entender toda aquela loucura, quando ouvi uma voz familiar pedindo “pães mais branquinhos, 200g de presunto, mussarela, carolinas e um leite de saquinho.” Meu pedido. Sempre foi. Com carolinas no fim, como se a sobremesa selasse a rotina.
Virei. E ali estava ele. Camiseta de listras finas, igualzinha à que ganhei anos atrás de um amor que se perdeu no tempo. Saiu com um saco de pão e um passo que eu conhecia.
Perguntei ao caixa se o conhecia. “Vem todo dia, no mesmo horário.”
Voltei no dia seguinte. Esperei. A voz veio de novo, como um eco do que eu era — ou do que nunca fui. Quando me aproximei para falar, uma mulher o abordou. Conversaram sobre geopolítica e a nova guerra no Oriente Médio. Ele dizia tudo que eu sempre pensei, com as palavras que eu nunca soube escolher.
Na despedida, ela o chamou pelo nome. O meu nome. Exatamente o meu.
Corri para a janela da padaria, como quem espera ver um fantasma — mas o que vi foi diferente: era eu. A mesma altura, o mesmo andar. Até o jeito de andar... era meu. Mas havia algo mais. Uma leveza. Um brilho no olhar que eu não lembrava de ter.
Voltei para casa e comecei a pesquisar. Descobri que trabalhava na área que sempre sonhei. Era formado pela universidade onde fui reprovado por décimos. Publicava crônicas em um blog com meu nome.
Passei dias obcecado. Ele era uma versão mais organizada, mais bem-sucedida, mais... feliz. Uma espécie de “eu que deu certo”.
E eu?
Fiquei ali. Estagnado. Como quem perdeu uma corrida que nem sabia estar correndo.
Hoje, olho para minha camisa xadrez com um misto de nostalgia e dúvida. Será que tudo aquilo foi real? Um erro no sistema, um lapso da realidade, um desvio no tempo?
Não sei.
Mas aprendi algo: há versões de nós por aí — que sonham o que sonhamos, vivem o que deixamos escapar, e seguem caminhos que nunca tivemos coragem de seguir. Talvez nunca o encontre de novo. Acho nem devesse.
Mesmo assim, quando vou à padaria, ainda peço carolinas.
Só por garantia.
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