A Menina do Ônibus e o Sol do Fim da Tarde
- Admin
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Uma das poucas certezas que eu tenho é que a gente se apaixona mesmo quando não entende bem o porquê. No meu caso, foi pela menina do ônibus. Nunca soube seu nome. Ela nunca me notou de verdade. E mesmo assim, por algum tempo, tudo girava em torno do momento em que a veria, na saída da escola, naquele sol meio laranja do fim da tarde, quando a cidade parece cansada, mas ainda pulsa.
Ela estudava no Colégio de Aplicação e usava aquele uniforme com camisa branca e calças azul-marinho. Eu, do Instituto, observava de longe — como quem estuda a previsão do tempo: sem poder mudar nada, mas tentando entender os sinais. Às vezes, eu ia pra aula desanimado, mas bastava lembrar que na volta ela estaria lá, esperando o mesmo ônibus que o meu, e já era como se o dia tivesse ganhado algum sentido.
Fiquei especialista em notar detalhes. Os cabelos negros dela tinham um brilho bonito quando o sol batia de lado. Teve uma época em que esfriou, e ela começou a usar um moletom cinza da Minnie dançarina — uma dessas roupas que a gente guarda por carinho, não por estilo. Tinha algo naquele moletom que me fazia querer protegê-la. E teve também o dia em que percebi que ela tinha cortado o cabelo. Achei que tinha ficado mais linda ainda. Depois, reparei que ela começara a usar sutiã — notava pelas alças que marcavam sob a blusa. Não era desejo, era espanto: a infância estava ficando pra trás. A dela. A minha.
Nunca trocamos uma palavra. Mas escutei sua voz algumas vezes. Numa delas, uma senhora falava sobre escolhas difíceis, e ela escutava, com aquela atenção que só as pessoas sensíveis têm. Me marcou. Aquela voz era suave, firme, boa de ouvir. Eu pensei em falar com ela tantas vezes. Cheguei a ensaiar perguntas bobas na cabeça, mas o silêncio sempre vencia. Eu me contentava em vê-la, em fazer parte daquele mesmo ônibus, mesmo que separados por alguns assentos e um universo inteiro.
Teve um dia em que ela não apareceu. Nem no outro. Nem na semana seguinte. Comecei a sair mais cedo, ficar nos arredores do ponto, fingindo esperar um ônibus que nem passava por ali. Fui até perto do ponto do Aplicação, só pra ver se a encontrava saindo da escola, mas nada. Aos poucos, fui aceitando que ela não voltaria. Talvez a família tivesse se mudado. Talvez o pai tivesse conseguido comprar um carro, ou agora sobrava gasolina no fim do mês. Talvez a vida deles tivesse melhorado — e esse, ironicamente, foi o motivo do nosso desencontro.
Fiquei triste. Não como quem perde alguém de verdade, mas como quem deixa de acreditar em pequenos milagres do cotidiano. Aquela paixão muda, tímida e cotidiana tinha ido embora, sem aviso, sem fim, sem história.
Voltei a andar de ônibus com menos esperança. O mesmo sol de fim de tarde, os mesmos bancos duros, o mesmo trajeto. Mas tudo parecia mais silencioso. Ela havia se tornado uma ausência. Uma pergunta sem resposta.
Às vezes penso que ainda posso encontrá-la por aí. Num mercado, numa feira, numa livraria. Talvez ela tenha crescido diferente do que imaginei. Talvez nem lembre da época dos ônibus. Talvez nunca tenha me visto. E tudo bem. Porque, mesmo sem saber, ela me ensinou a esperar por coisas boas.
E, às vezes, isso é tudo o que a gente precisa pra atravessar os dias.
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