Dias de chuva também têm sua função
- Admin
- há alguns segundos
- 2 min de leitura
Atualizado: há 3 dias

Não me lembro exatamente quem disse isso, talvez tenha sido minha avó, talvez algum escritor melancólico que gostava de metaforizar o tempo. Acordei com o barulho da água hoje — não o do chuveiro ou da torneira mal fechada, mas o som da chuva fina, insistente, daquelas que não fazem escândalo, mas molham até a alma.
Levantei devagar, sem a menor pressa de encarar o mundo. Pela janela, tudo era cinza. E mesmo assim, havia algo de bonito. O vidro embaçado, os pingos escorrendo como se desenhassem caminhos tortos, a calçada vazia refletindo os postes acesos, mesmo de dia. A cidade parecia encolhida, como quem sabe que o tempo hoje não vai ajudar.
Fiz o café com calma, tentando equilibrar a colher de açúcar com o barulho da goteira na área de serviço. O som ecoava como uma espécie de lembrete: o telhado ainda precisa de conserto. Sempre precisei, mas só lembro nos dias assim. Pensei nas roupas molhadas no varal, no guarda-roupa embolorado, na infiltração que mancha a parede atrás do sofá. Em tempos de chuva, tudo que estava escondido resolve se mostrar.
Há quem diga que dias assim são inúteis. Chatos. Desnecessários. Mas talvez seja porque eles obrigam a gente a ver o que está mal resolvido — dentro e fora da casa. Chuva não perdoa o mofo, não ignora o vazamento, nem passa pano na nossa pressa de fingir que está tudo em ordem. Os dias de sol encobrem muita coisa. Os de chuva, não.
Lá fora, ouvi um vizinho resmungar alto — deve ter sido mais uma calçada alagada. Alguém buzinou por quase um minuto, talvez revoltado com o trânsito que se forma até na rua mais simples em dias como hoje. Não julgo. A chuva atrasa, irrita, atrapalha planos. Mas talvez seja por isso que ela seja tão necessária. Só sentimos a leveza de um dia claro quando atravessamos a densidade de um nublado.
Voltei para a janela com a xícara quente nas mãos. Uma senhora passava com o guarda-chuva torto, dividindo espaço com um menino que saltava nas poças d’água como quem ignora os boletos, as infiltrações e as responsabilidades. Sorri. Não porque era engraçado, mas porque era sincero. Às vezes, a infância é o único lugar onde a chuva é recebida com festa.
Não arrumei a cama. Nem lavei os copos da noite anterior. A camisa pendurada ainda estava úmida, então vesti outra, mais velha, mais confortável. Saí com os pés meio molhados, enfrentando o dia como se enfrentam os dias de chuva: sem controle, mas com alguma coragem.
Sim, a cidade vai reclamar. Os motoristas vão xingar. O céu vai demorar a clarear. E ainda assim, sem esses dias cinzentos, o brilho do sol seria banal. É nos dias de goteira, mofo e poça d’água que a gente aprende a valorizar o calor, o seco e a luz.
Porque só quem atravessa a tempestade é que reconhece a bênção do verão.
Comments