Saudade, a Inquilina do Silêncio
- Admin
- 12 de jun.
- 2 min de leitura
Atualizado: 30 de jun.

A saudade voltou. Não bateu à porta, não mandou bilhete, nem deixou recado na caixa de mensagens a — simplesmente entrou, como quem nunca foi embora de fato. Chegou num domingo à tarde, desses que cheiram a bolo assando e ausência, desses em que o tempo escorre devagar só pra lembrar que é ele quem manda. Sentou no sofá da sala, puxou uma manta antiga e cruzou as pernas, como se a casa ainda fosse dela.
A saudade é magra, muito magra. Tem dedos longos e olhos fundos, daqueles que parecem guardar todos os filmes de infância e os abraços que não voltaram. Usa uma camisa social do meu avô, meio amarelada, com cheiro de madeira guardada e colônia fraca. Veste calças largas, desbotadas nas bordas, e sempre carrega um lenço — diz que é pra limpar os óculos, mas vive enxugando os olhos. É vaidosa, mas desleixada. Tem mania de arrumar meus porta-retratos quando ninguém está olhando.
Ela fala baixo, às vezes nem fala. Mas sabe o que mais irrita? Ela canta. Canta aquelas músicas que não escuto há anos, desafina no refrão, mas faz questão de me olhar enquanto cantarola. Ontem, mesmo, ficou horas repetindo a melodia daquela noite em que dancei com alguém que esqueci por fora, mas que ela insiste em me lembrar por dentro.
A saudade tem seus hábitos: adora abrir caixas antigas, bisbilhotar cartas sem destinatário, reler dedicatórias feitas com esferográficas que pelo tempo já estão borrando nesses livros esquecidos. Gosta do quartinho de dispensa toda desorganizada, e da última gaveta da escrivaninha. Vive me mostrando coisas que eu mesma escondi. Tem um prazer quase cruel em me entregar lembranças embrulhadas em papel amarelado.
Ela me acompanhou até a padaria, comentou baixinho sobre como aquele moço do balcão tem o sorriso parecido com o do meu irmão quando voltava das festas. Também me fez lembrar do perfume que avó usava nas festas de fim de ano, aquele cheiro que agora só vive em toalhas que não são mais lavadas.
Hoje, deixei que ela dormisse até mais tarde. Fiz silêncio, evitei qualquer música ou cheiro. Mas, ao espiar pelo buraco da fechadura, lá estava ela: dobrando meus pijamas como se fosse minha mãe, alinhando os sapatos como fazia meu pai. Me olhou como quem não tem culpa por estar aqui.
O pior da saudade é que, mesmo inoportuna, ela é familiar. Já conheço suas manias, suas manobras, e às vezes — só às vezes — até gosto da companhia. Mas hoje estou cansada. Deixei o café passar do ponto, esquentei o almoço no micro-ondas, fechei as janelas pra não deixar o cheiro de passado entrar. Mas não adianta.
Ela não vai embora. Só muda de canto. E se ajeita no meu peito como se fosse lar.
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